10.22.2008



Já está pronto o “Dacoli e dacolá”. Sete histórias ilustradas escritas aqui e ali; três em Canas de Senhorim e as outras por esse país fora. Algumas já conhecem de me ouvir contar, outras serão novidade...espero que gostem. http://www.pedepagina.pt/DacoliDacola.htm
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Os dois fantasmas

Moravam os dois fantasmas, “dos livros que ainda não foram
lidos”, lá num casarão perdido no meio da Vila. Uma mansão
mais parecida com as “casas dos Brasileiros”, bem típicas lá
de Aveiro.
A casa era ampla e tinham muito espaço para deambular.
Ainda por cima estava vazia pois ninguém a queria habitar.
Voltejavam com os seus lençóis brancos, percorrendo a casa
toda numa inquietude de quem procura alguma coisa. E o seu
lugar favorito, dentro da grande casa, era a biblioteca
escondida lá nos fundos.
Bem tentou o proprietário alugar aquela casa, mas quem por
lá passava pouco tempo ficava.
Era um desassossego durante a noite...
Som de coisas partindo-se, correntes de ar percorrendo a
casa, vindas de lugar nenhum e livros tombando no chão da
biblioteca. Sem nenhuma explicação...
- Ninguém pregava o olho!
Até que um dia, surgiu na vila um casal disposto a alugar
aquela casa amaldiçoada. Eram gente de longe com um filho
de olhos muito grandes, cheios de vontade de conhecer
as coisas do mundo.
O caseiro, encarregado da transacção, ainda perguntou ao
casal depois da decisão:
- Mas não têm medo da casa e da sua assombração?
Logo ali contou a história daquela triste mansão.
Tinha sido a casa de dois irmãos gémeos e professores, por
sinal. Tinham vivido ali durante muito tempo e, dizem, nunca
conseguiram ler a biblioteca toda até ao final. Morreram os
dois no mesmo dia, vai-se lá saber porquê. Sem terem lido
todos os livros da sua biblioteca.
O menino ficou logo curioso com a biblioteca, enquanto os
pais assinavam o contrato de arrendamento.
Passado algum tempo já estavam instalados naquele velho
sobrado de águas largas e árvores frondosas.
Acostumados aos ruídos da grande cidade não deram por
nada, dormindo a sono solto. Mas quando a casa fez sentir
seu silêncio, começaram a reparar nos sons nocturnos que
vinham da vasta biblioteca.
Era um restolhar de papéis, livros caindo no soalho, janelas e
portas fechando e abrindo lá no coração da noite.
Começaram logo a pensar nas palavras do velho caseiro...
Mas o menino tinha olhos grandes. É sabido que olhos
grandes servem para ver o mundo até na mais completa
escuridão.
Assim, uma noite em que os pais se revolviam nos lençóis
sem conseguir dormir, o menino dirigiu-se à fonte de todos os
ruídos: a Biblioteca.
Entrou, sentiu a corrente de ar e viu um livro aberto no chão.
Tinha talvez tombado de uma das grandes estantes... Pegou
nele e leu precisamente a página que estava aberta:
“Assim que entrou em casa, Gepeto agarrou logo nas
ferramentas e pôs-se a esculpir e a construir o seu boneco.
Que nome lhe hei-de dar? – Disse de si para si. – Quero que
se chame Pinóquio”-
Mas eu conheço esta história... Pensou o menino.
E continuou a ler, desta vez em voz alta, recostando-se num
cadeirão.
As correntes de ar cessaram e até teve a sensação de que
alguém lia o livro ao mesmo tempo do que ele, espreitando
por cima do seu ombro. Quando terminou a história foi-se
deitar numa casa agora mergulhada em sossego. O pai já
ressonava com a mãe agarrada ao seu corpo.
Neste ponto, terei que dar uma explicação aceitável sobre os
nossos fantasmas dos “livros que ainda não foram lidos” ou,
se quiserem, dos “livros que ainda estão por ler”.
Como é sabido, os fantasmas não têm dedos. Como hão-de
consultar uma biblioteca? Ora bem... Só provocando correntes
de ar ou outras coisas menos materiais para fazer tombar os
livros das estantes... Caído o livro no chão, basta só uma
pequena aragem para mudar de página...nem sempre é fácil.
O problema reside em tirar os livros que ainda não foram lidos
das prateleiras. É necessária uma boa dose de esforço e de sorte.
- Este menino veio mesmo a calhar. - pensou logo um dos
irmãos fantasmas, sentindo a concordância do outro que
agitou o seu lençol afirmativamente.
No dia seguinte, ou melhor, na noite seguinte, o menino
dirigiu-se à biblioteca assim que escutou o som da escova de
dentes percorrendo energicamente a boca do pai.
Já lá estava alguma agitação... A janela abriu-se de repente e
o acervo da estante superior agitou-se destacando uma
lombada.
- Grimm? Interrogou-se o menino.
- Pois bem, estão seja...
Sentou-se confortavelmente no cadeirão da biblioteca e
começou a ler, sentindo de novo aquele arrepiozinho
agradável de quem não está só. Mas os “contos de Grimm” são
extensos e o menino começou a ficar com sono. Então poisou
o livro, aberto, sobre a grande mesa da biblioteca e foi-se
deitar. A casa estava calma e cheirava a sono.
Na manhã seguinte, foi dar uma espreitadela à biblioteca. O
livro que havia deixado aberto, estava agora fechado com a
contracapa para cima.
- Ahhh...Então leram.- pensou, cheio de vontade que
chegasse a noite. Mas o pai já estava lá fora às apitadelas,
convocando-o para um dia de escola.
Chegada a noite, sentindo que os pais já se recolhiam no
quarto, entrou na biblioteca assombrada: e lá estava um livro
tombado no chão!
Pegou no livro e leu... Matilde Rosa Araújo.
Chegou rapidamente à conclusão que aqueles dois fantasmas
se tinham esquecido de ler os livros das suas infâncias.
assim se justificava aquele tipo de escolha. Não leram nada
quando eram meninos... Pensou.
De qualquer forma estava a divertir-se bastante com aquelas
leituras nocturnas.
Leu um pedacinho do livro e deixou-o ficar aberto em cima da mesa.
Claro está, durante a noite, os fantasmas leram o livro todo.
A partir daquele momento, o grande casarão passou a ser
uma casa serena.
Um dia, o Pai, vendo o filho descer as escadas perguntou:
- Onde vais a esta hora?
- Vou dar de ler aos fantasmas. - respondeu a criança.
Agora tenho uma pergunta para vocês, leitores.
E quando se acabarem os livros da grande biblioteca? Será
que podem levar convosco estes dois fantasmas, que ainda
não leram tudo, para vossa casa?
À velocidade a que os livros tombam no chão da biblioteca,
daqui a pouco acaba-se a literatura para a infância.
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.........................................................................Miguel Horta
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